parent nodes: Artigos e textos selecionados sobre narratologia | Roteiro de análise de obras artísticas


Joyce, Machado e o narrador embusteiro



A minha primeira reação foi a de apontar equívocos na narrativa de Vila-Matas, mas desisti para não bancar o crítico ranzinza e chato. Afinal, sou apenas um criador, que às vezes se passa por crítico. Não devo pensar que os outros devam seguir as minhas preocupações de ficcionista. Mas são ensinamentos que aprendi em muitos anos de estudo com os clássicos. Aprendi, por exemplo, a separar narrador do relator — este ser ficcional que se confunde com o leitor e, não raras vezes, com o narrador onisciente, quando interfere no texto, desanda a dar opinião e interfere muito.

Renunciei ao meu desejo ao perceber que, embora seja um bom relator, Vila-Matas conduz o texto com frases e personagens bem elaborados, elegantes, objetivos, mas lhe falta o mistério, o estranhamento que torna a ficção intrigante. Tem todas as qualidades de um grande escritor, sem dúvida. Causa paixão e envolvimento, mesmo quando apenas diz o que tem de dizer, e não deixa nada para o leitor. Está aí o problema do relator: entregar o texto, mesmo que belo e notável, pronto demais. É preciso que o narrador contemporâneo seja “astuto, calculista e embusteiro”, conforme a classificação de Mário Vargas Llosa. Deve sempre seduzir ou enfeitiçar o leitor. O melhor exemplo brasileiro disso é ainda, sem dúvida, o Dom Casmurro, de Machado de Assis. Bentinho tem essas qualidades fascinantes para um personagem-narrador. Logo no princípio do romance, ele se mostra um mentiroso pela ação, e não pelo relato puro e simples. Machado de Assis não diz, mostra, e o resto fica por conta do leitor. Assim:

Uma noite dessas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei no trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu. Cumprimentou-me, sentou-se ao pé de mim, falou da lua e dos ministros, e acabou recitando-me versos. A viagem era curta, e os versos pode ser que não fossem tão maus. Sucedeu, porém, que, como eu estava cansado, fechei os olhos três ou quatro vezes; tanto bastou para que ele interrompesse a leitura e metesse os versos no bolso.

— Continue — disse eu acordando.

— Já acabei — murmurou ele.

— São muito bonitos.
Típico narrador “astuto, calculista e embusteiro”. Mente descaradamente. Primeiro, porque engana o próprio leitor ao dizer “pode ser que não fossem tão maus.” Eram ruins, ou podiam ser consertados por um bom poeta? E seria Bentinho um bom poeta? Sequer um crítico? E, depois, porque fica claro que não prestavam mesmo. Ele não diz que não prestam e prepara uma frase longa, indecisa, confusa. Mas calcula a resposta para depois mentir enfaticamente: “são muito bonitos.” Mente duplamente, para o leitor e para o personagem. Portanto, um narrador que procura envolver e enganar, seduzir e enfeitiçar. Diferente do relator, em Vila-Matas, que apresenta logo todas as armas, sem sinuosidades, sem astúcia, sem cálculo, vai direto ao objeto, realizando um perfeito perfil psicológico do protagonista:

“Pertence à estirpe cada vez mais rara dos editores cultos, literários. E comovido assiste, todos os dias, ao espetáculo de como o ramo nobre do seu ofício — os editores que ainda lêem e que sempre foram atraídos pela literatura — vai se extinguindo sigilosamente, no começo deste século. Teve problemas há dois anos, mas soube fechar a tempo a editora, que no fim das contas, mesmo tendo obtido um notável prestígio, caminhava com assombrosa obstinação para a falência” (…) “Samuel Riba — Riba para todo mundo — publicou muitos dos grandes escritores de sua época. De alguns, apenas um livro, mas o suficiente para que estes constem do seu catálogo.”

Mas o escritor espanhol deve rir de tudo isso. Neste mesmo Dublinesca ele ironiza uma teoria geral do romance do futuro, formulada por Julien Gracq, que estabelece cinco regras básicas para a prosa de ficção: 1) intertextualidade; 2) conexões com a alta poesia; 3) consciência de uma paisagem moral em ruínas; 4) ligeira superioridade do estilo sobre a trama; e 5) a escrita vista como um relógio que avança.

Mais adiante, continua o narrador: “que grande perda de tempo, pensou Riba, filiar-se a uma teoria para escrever romance. Agora ele podia dizer isso com conhecimento de causa, porque acabara de escrever uma.” Mesmo assim, não se defende aqui uma teoria da prosa, mas estudam-se as suas possibilidades e examinam-se os elementos internos, conforme expressão grafada pelo Formalismo Russo, sem qualquer vinculação a escolas.

Ao contrário desta narrativa direta, incisiva, clara, prefiro o texto sinuoso, misterioso, algo metafórico ou simbólico, mesmo considerando que Enrique Vila-Matas seja um grande escritor, da tradição dos melhores relatores. Tenho preferência pela narrativa indireta, aquela em que o autor conta, vislumbra, questiona, e nada diz. Faz surgir a imagem ao invés de nomear as coisas. Em Um retrato do artista quando jovem, James Joyce nunca diz que Dedalus está amando, está apaixonado. Assim. Dedalus e a namorada, apaixonados, sem que precise dizer objetivamente, como acontece com a moça. Ele cria uma imagem e isso passa com grande força e beleza. Eis a imagem:

Ela estava sozinha e parada, contemplando o mar; e quando lhe sentiu a presença e o olhar maravilhado, volveu até ele os olhos numa calma aceitação do seu deslumbramento, sem pejo nem luxúria. Muito, muito tempo agüentou ela aquela contemplação; e depois, calmamente, afastou os olhos dele e os abaixou para a correnteza, graciosamente enrugando a água com o pé, para lá e para cá.

Toda uma maravilha de texto, exemplar, que produz o amor, a paixão, sem que necessariamente diga isso. É o sentimento, é a sensação, e não um relato sobre dois apaixonados. E é isso o que vai impressionar o leitor para o resto da vida, o amor corporificado em imagens e visões.

Além disso, Vila-Matas usa a estratégia de trazer outras vozes contemporâneas para dentro do texto, realiza aquilo que, para muitos, é apenas intertextualidade. Pura repetição de fórmulas. Ricardo Piglia, outro grande criador, mostra que não é apenas intertextualidade, ou meras citações. Há a necessidade de um coral que acompanha ou acrescenta a narrativa, enriquecendo-a, de forma vigorosa. Assim é que aparecem as vozes de Emily Dickinson, Rimbaud, Joyce, Yeats, entre outros. Não são citações; citações ocorrem nos ensaios, na obra literária de criação, são vozes.

ENCYCLOPAEDIA V. 51-0 (11/04/2016, 10h24m.), com 2567 verbetes e 2173 imagens.
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